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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A donzela e o mar


se vistes meu amigo?
E ay Deus, se verra cedo?


Voltemos ao tempo em que as mocinhas ainda tinham orgulho de serem donzelas. No entanto, nossa donzela não era mais tão donzela assim. Embora tivesse o coração puro o suficiente para entregar o único bem que jamais poderia lhe ser devolvido. Mas nossa donzela era inocente demais para saber dessas particularidades do mundo.
Havia conhecido esse rapaz pelo qual se apaixonou loucamente, e dizer isso talvez seja desnecessário, pois toda paixão é louca, caso contrário não é paixão. O fato é que, tomada por um sentimento arrebatador, não pôde contrariar as vontades de seu amado. Muito menos as de seu corpo. Tal moço era um marinheiro que havia parado na cidade. Por lá permaneceu algumas semanas juntamente com a tripulação. Os homens procuraram espantar sua solidão com as mulheres do lugarejo. Não obstante, não se deve pensar que nossa donzela fosse uma mulher da vida. Também não era nenhuma fidalga. Apenas uma camponesinha humilde, dessas que trazem consigo a beleza inerente à juventude. Então um dia de manhãzinha, naquele momento indefinido em que o dia encontra a noite já agonizante (momento efêmero que, por esse motivo, não tem um nome só seu), o marujo em questão retornava de uma noitada e topou com a mocinha que ia à feira acompanhada da mãe. Apesar do cansaço de uma noite mal dormida, o rapaz foi atrás da moça tomado por um repentino encanto. Descobriu onde era sua casa e passou a fazer-lhe a côrte. Tudo muito bem escondido dos pais, afinal não queria nem poderia firmar compromisso sério. Não foi difícil convencê-la uma vez que o amor era tudo que ela esperava para sua vida. Viam-se todos os dias ao cair da tarde, hora em que ela ia colher flores para enfeitar a mesa do jantar. E naquela época as flores nasciam em todos os cantos, não era preciso comprá-las. Os sonhos da mocinha pareciam ter se realizado. Tinha um amor que lhe inflamava a alma, não precisava de mais nada. Os sonhos. Mas ninguém havia lhe dito que o amor tem suas companhias, essas nem sempre tão agradáveis. A mais próxima é o sofrimento. E desde a primeira despedida ela havia sofrido. Daí em diante todas as horas que tinha que passar longe dele eram horas mortas. No entanto, às vezes gostava da breve separação, pois a expectativa tornava o reencontro ainda mais emocionante. Até que chegou o inevitável dia que o navio do rapaz voltou para o mar. Assim ele partiu deixando para trás partido o coração da infeliz donzela.
Ele prometeu a ela que em breve voltaria, embora soubesse que tal promessa era uma mentira. Ela, porém, acreditou e ia todos os dias ao porto aguardar seu retorno. As semanas se passaram. Nada. A angústia e o desânimo tomaram conta dela. Como não tivesse ninguém a quem confidenciar suas angústias, elegeu como confidente as mornas águas do oceano que banhavam a cidade. Passou a ir à beira do mar e com ele conversava. Queria saber onde estava seu amado, será que havia morrido durante uma tempestade? Ou será que sucumbira a algumas das tantas epidemias comuns àquela época? O mar não respondia embora soubesse. Mas não podia magoá-la. Ela, que inocentemente arriscara sua honra. Como diria? Tentava confortá-la atirando mansamente sobre seus pés a espuma formada por suas ondas. A donzela, não tendo mais o que fazer, chorava. E suas lágrimas se misturavam à espuma do mar. Com o coração dolorido voltava para casa. Sua vida passou a ser uma longa espera. Não ia mais colher suas queridas flores, não queria fazer mais nada, mas fazia, porque uma moça sem grandes recursos não se pode dar ao luxo de nada fazer. Fazia, então, sem vontade a suspirar de tristeza.
No outro dia, lá estava ela novamente sempre fiel à sua dor. Pelo amado perguntava. O mar tudo sabia, mas não ousava. Como diria? Dizer que dela ele mal se lembrava. Que se embriagava e se deitava com outras mulheres, desonrando ainda mais o corpo inocente da pobre menina. O mar era só revolta, mas não podia dizer. Não podia dar-lhe mais desgostos, deixá-la saber que a honra para sempre perdida se perdera por nada. O mar se calava. Mas para consolá-la lançava suas tépidas águas calmamente contra ela. A menina chorava. E o sal de suas lágrimas misturava-se às águas do mar.
Depois de tantas lágrimas e tantos dias, o mar já sentia que ele e a moça eram um só. Tanto dela está em mim, não posso mais me calar. E no fim da tarde, quando a donzela veio lamentar-se, ele pela primeira vez com ela falou. Minha linda donzela, teu amor não te merece. A esta hora de ti o ingrato nem se lembra. Embriaga-se e deita-se com mulheres de índole duvidosa. Por favor, esquece. Ela não acreditou no que ouvia. Como podes ser tão cruel comigo? Inventas mentiras de meu amigo, enganador. Acaso tens inveja de minha alegria? Que alegria, minha menina? Só te vejo a chorar, desenganada, esperando um amor que não existe. A donzela parou por alguns instantes, era verdade. Como pudera ser tão inocente? Que loucura. E estando já desgraçada pediu ao mar que a levasse. Ele não quis. Do longo caminho que é a vida percorreste somente a metade, querida. Ainda tens tanto pela frente. Podes encontrar outro rapaz... A vida... A vida não é nada. Agora sei que em meu caminho só encontrarei sofrimento, porque tudo é uma grande ilusão. De que vale toda uma vida? Daqui a um tempo, o trabalho pesado arrancará de mim todo vestígio de beleza. Também não tenho dotes. Nem minha honra tenho para oferecer. Comigo, só trago a lembrança de minha desonra e a certeza de um destino tortuoso e incerto. De que vale portanto toda uma vida? Disse isso e correu em direção ao mar que agitou-se tentando expulsá-la. Ela lutou até que ele teve que se resignar à vontade dela. Deixou que ela afundasse em suas águas enlaçando-a com delicadeza. Agora eram um só.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

coracoessolitarios.com



Quando a síndica do prédio abriu a porta do apartamento 158 mal pôde acreditar no que seus olhos viram. A decisão de lá entrar sem ser convidada surgiu após inúmeras reclamações dos vizinhos que diziam que a moradora havia viajado deixando o lixo dentro de casa. Outros optaram por afirmar que a desalmada abandonara o pequeno poodle, que terminou por sucumbir à fome e agora apodrecia em algum canto.  Tanto uns quanto outros tinham que conviver com aquele terrível fedor de carne podre. Sem ter outra opção, a senhora pegou a chave reserva que o cargo concedia-lhe o direito de ter e apossou-se da intimidade alheia. Antes tivesse chamado a polícia. Senhor Jesus, o que aconteceu aqui. A imagem do corpo envolto em sangue já seco causou-lhe náuseas e ela não pode segurar o grito horrorizado. Em instantes, uma pequena multidão de curiosos corria para ver a cena digna de páginas policiais.
*****
“Marjorie?”
“Sim. E você deve ser o Leonardo.”
“Me chame de Leo, por favor. Faz tempo que você chegou?”
“Não, quinze minutos talvez.”
“Você é mais bonita do que nas fotos”
Ela riu.
Não era tão bonita assim, mas chamava a atenção. Beirava os trinta anos. Dizia que tinha 23 e todos acreditavam. O rosto era comum, olhos comuns, lábios comuns, maçãs do rosto comuns, o nariz que era um pouco maior que o normal. A maquiagem disfarçava essa ligeira imperfeição.  Os cabelos eram longos, castanhos com mechas. A última moda. Um vestido de grife cobria o corpo moldado na academia de ginástica. Levava a rotina de exercícios a sério, não podia engordar um grama, caso contrário prejudicaria os negócios. Para terminar, os sapatos Jimmy Choo. Exclusivíssimos.  Três mil reais o par. Presente de seu último querido, que teve que dar fim a relação devido às desconfianças da esposa. Tinha que encontrar outro e lá estava ela. Até que ele não é tão ruim assim. Um pouco velho, cinqüenta anos talvez, mas tá bem conservado. Dá pro gasto, o importante é ter grana. Ele não era tão velho assim. No entanto, anos de estresse o haviam envelhecido. Não que não se cuidasse. Muito pelo contrário. Para um homem, até que era vaidoso. Mantinha o peso com exercícios e dieta balanceada. Não conseguia evitar a calvície, mas isso ninguém evita. Perdera tantos anos dedicando-se à empresa e agora resolvera arranjar uma amante. Algo sem muito compromisso. Havia sido casado. A mulher o abandonou porque ele nunca estava em casa. Criou os filhos, dois, sozinha. Um dia chegou em casa e foi dormir. Quando acordou, notou que a esposa não estava a seu lado. Procurou pela casa. Ninguém. No começo, sentiu falta das crianças, mas não foi difícil superar uma vez que ele raramente estava em casa. Hoje são desconhecidos. Aparecem apenas quando precisam de dinheiro. Como se eu já não desse o suficiente. Mesmo assim, dava. O dinheiro era uma forma de compensar sua ausência.
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- Se você não se importar, vou ser direta.
- Claro. Você quer falar de negócios.
Ela riu.
- Olha, o negócio é o seguinte, faço o que você quiser na cama por uma mesada de 10 mil. Você quer uma coisa fixa né?
- Sim, não quero ter trabalho com esse tipo de coisa.
- Então tá certo.
- Está sim querida. Podemos jantar?
- Claro.
- Reservei uma suíte neste hotel mesmo. A gente come alguma coisa e depois vai pra lá.
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Há alguns anos se mudara para São Paulo com o sonho de ser modelo. Era alta e tinha as pernas compridas. Infelizmente, ela não era a única garota do interior que se muda para a cidade grande querendo seguir a profissão. Alguns trabalhos surgiram, mas no final do mês sempre faltava para as contas. Cansada daquela vida, resolveu procurar uma alternativa. Seria só no princípio, assim, pagaria a faculdade de turismo e depois sairia daquela vida. E realmente foi o que fez, mas os empregos que arranjou depois da faculdade não rendiam o mesmo que os programas, por isso não pôde sair. Tinha necessidades caras que foram ficando cada vez mais caras com o tempo. Passou a investir nos negócios, pôs silicone nos seios e outros retoques. Decorridos dois anos, havia desistido de ter outra vida. Era preciso ser realista. Não lamentava. Ganhou o apartamento de um gringo que tinha negócios no Brasil. Ele disse para não economizar e ela não economizou. Um dia, ele parou de vir. Não reclamou o apartamento. A ela só restou buscar outros homens que desejassem seus carinhos. Não foi difícil.
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Conheceram-se através de um site de relacionamentos, corações solitários. Lá, garotas ofereciam serviços de acompanhante. Os homens eram chamados de “queridos”. Podia ser por uma noite ou por tempo indeterminado. A segunda opção era a mais procurada, embora não faltassem aqueles que desejassem algo mais passageiro. Depois do jantar foram para o quarto. Ele gostou dela e, acima de tudo, gostou da ideia de não ter nenhum compromisso afetivo. Firmaram um relacionamento. Pedia que ela fizesse as coisas mais absurdas na cama, ela fazia. E aqui o bom tom nos obriga a não descrever as minúcias da vida sexual do casal. Sendo assim, fica a cargo do leitor definir com a imaginação tais perversões. O problema é que essas perversões começaram a se tornar cada vez mais perversas e até ela, acostumada com as fantasias mais estranhas, não pôde mais suportar. Ninguém nunca lhe pagara tão bem. Leonardo dava muito mais que os dez mil pedidos no início do relacionamento. Além do mais, ele era possessivo. Ligava duzentas vezes por dia, queria saber onde ela estava. Aparecia sem avisar com o objetivo de pegá-la de surpresa caso tivesse outro. Queria exclusividade. Não pagava a ela todo aquele dinheiro para ter material de segunda mão. Marjorie decidiu dar um fim. Ligou para ele e disse que queria conversar.
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Chegou pontualmente na hora marcada. Ela foi direto ao assunto:
- Não podemos nos ver mais.
-Por quê?
- Estou apaixonada por outro. Quero sair dessa vida.
Mentiu. Não o agüentava mais. Suas loucuras.
- E quando arranjou tempo para encontrar-se com outro?
- Nos conhecemos por aí, trocamos telefone. Tô apaixonada pelo cara e ele não sabe que faço essas coisas.
- Como vai sustentar seus luxos?
- Eu me viro.
- Eu pago mais.
- Não quero.
- Sua vagabunda.
Ela não se incomodou. No fundo, também se achava uma vagabunda, mas não acreditava que isso fosse uma coisa ruim. Tinha carro, casa, roupas caras, perfumes, sapatos... Que mulher decente tem tudo isso? Que se foda, sou mesmo uma vagabunda. Prefiro, do que ser uma dessas que se casa por amor e depois vê que enfiou a vida na merda. Nunca seria uma dessas. Antes ser uma piranha que se vende, mulher que dá de graça é burra. Quis dizer, mas não disse. O papo de estar apaixonada tinha que colar.
- Já disse tudo?
Virou as costas e saiu andando. Ele a segurou e esbofeteou. Um, dois, três tapas até onde conseguiu lembrar-se. Depois perdeu os sentidos. Voltou a si meia hora depois. Ele não estava mais lá. Foi olhar seu rosto. O estrago fora grande, iria atrapalhar os negócios por alguns dias. Desgraçado! No quarto, viu algumas de suas roupas rasgadas. Fazer o quê?
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As marcas não demoraram a desaparecer e logo ela pôde voltar à rotina. Logo começaram a surgir os problemas. Acontece que o amante não havia desistido dela quando a abandonou desacordada no chão da sala, depois de ter rasgado com as próprias mãos os vestidos que ela mais gostava. Ele passou a persegui-la. Ligava para ofendê-la, contratou um detetive. Sempre atrapalhava seus encontros chegando repentinamente e fazendo escândalos. Ela tomou uma decisão. Chamou-o para um encontro em sua casa. O mesmo lugar em que fora espancada covardemente seria o palco de sua vingança. Conseguiu uma arma com um amigo. Levou Mandy, a poodle, para a casa de uma amiga pois não queria que ela presenciasse os fatos que estavam por vir. Comprou o jantar e garrafas de vinho. Não teria a menor chance. Quando ele chegou, já estava tudo preparado. Jantaram. Ele até pediu desculpas. Queria compensar a violência do outro dia.
- Por que não vamos para o quarto?
Ela concordou. Esperou que ele se deitasse. Quando percebeu que estava completamente indefeso, retirou uma faca da gaveta. Desistiu da arma, o barulho poderia acordar os vizinhos. Por cima dele, acertou-lhe a barriga. Ia dar outra, mas ele reagiu e tomou-lhe a arma. Conseguiu acertá-la duas vezes, uma no peito e outra na perna. Um terceira golpe ainda perfurou-lhe as costas. Uma luta desesperada pela vida. Ela conseguiu desvencilhar-se e arrastar-se até o guarda-roupa onde havia deixado o revólver. Mal conseguia respirar. Ele estava na cama tentando estancar o sangue. A essa altura os alvos lençóis já haviam sido tingidos de vermelho. Ele não contava com aquela arma e nem notou quando ela colocou o travesseiro sobre seu rosto para abafar o barulho do disparo. Estava feito. O desgraçado parou de respirar. Percebeu que estava muito machucada. Precisava de ajuda. O telefone estava na sala. Com dificuldade começou a andar, mas logo caiu. Chegara tão longe para terminar daquela forma patética. Não pode ser. Preciso chegar lá. Iria dizer que foi legítima defesa. Ainda tinha umas marcas da surra de outro dia. No entanto, não resistiu. Sucumbiu no meio da sala, a alguns passos do telefone. O sangue continuou a sair formando uma poça. Foi notícia nos jornais, redes de TV e revistas.