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sábado, 30 de julho de 2011

Um dia perfeito

 Ana olhava aquele ser que ainda se fazia já sabendo que aquele fragmento de vida era ela e ao mesmo tempo era outra. Sabia que trilharia seu caminho, carregaria consigo suas dores e alegrias. E ela, como mãe, não poderia fazer nada para evitar as dores. Porque a dor é inevitável, embora a alegria nem sempre seja certeira. Enquanto isso, a menina, Renata, brincava no parque. O dia perfeito, céu aberto, o brilho do sol iluminando tudo ao redor, revoadas de pássaros, velhinhos que os alimentavam e tudo o mais que se pode esperar de um dia assim... Crianças sorrindo como se vivessem unicamente para aquele instante. As mães orgulhosas de suas crias, felizes por poderem participar do processo da criação que movia o universo. Como se sentiam importantes essas mães por poderem dar continuidade à raça humana. Desventuradas as mulheres privadas de tal privilégio. Essas aberrações. Pedras no caminho do processo natural da vida. Vidas sem sentido. Porque toda vida há de ter um sentido. E o sentido da vida daquelas mulheres que tão animadas observavam seus filhos correndo e brincando pelo parque era justamente aquele: nascer, encontrar um amor e fazer brotar frutos desse amor. A menina Renata sorrindo no balanço. Os olhos inocentes mal sabiam. O futuro. Nele deposita-se tanta esperança e, no final, não passa de uma amarga esperança. Como mãe doía-lhe demais saber o que a vida guardava para ela. Mas, ao observar aquelas outras mães, via uma esperança. Quem sabe fosse como elas? Não como ela, a mãe, sempre em busca. De quê? Talvez da vida. Nem ela sabia, a única coisa que sabia é que passou a vida como se lhe faltasse algo. E ter a consciência de que ninguém se importa. Estavam todos tão imersos na vida... Percebeu que somente ela podia sentir a tristeza daquele dia insuportavelmente belo. As crianças. A sua principalmente. Com que prazer ouvia seu riso. O mistério do riso originado das coisas banais. O riso que lhe era impossível. A menina vinha agora correndo em sua direção com os braços abertos. Ana sentiu-se feliz por estar ali ao seu lado. A vida dentro da vida. Esqueceu-se por alguns instantes de seus pensamentos. Segurou-a em seus braços como se aquela fosse a última oportunidade de fazê-lo. De repente havia se esquecido dela mesma e procurou ver aquele dia como aquilo que ele era. Apenas um dia perfeito.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Diálogo

- O que você tá fazendo aí?
- Tô montando um blog.
- Legal, e o que você vai por de bom?
- Ah, então, umas coisas que eu escrevo há algum tempo já. Tô selecionando o que eu acho que tá bom.
- Deixa eu ler alguma coisa.
- Mas não tá pronto ainda.
- Vamo lá. Você não confia em mim? Eu posso dar uma segunda opinião.
- Tá bom. Olha esse aqui.
(Passam-se alguns minutos)
- Posso ser sincero?
- Claro.
- Você acha que alguém vai ler isso?
- Ué, você não tá lendo?.
- Bom, eu li porque sou seu amigo, mas acredite, não é esse tipo de coisa que as pessoas querem.
- E desde quando você é especialista em pessoas?
- Posso não ser, mas sei que isso não vai agradar ninguém. É tudo muito confuso, ninguém quer saber de problemas e é só isso que vejo aqui. As pessoas querem soluções, é isso que você tem que dar a elas.
- E como vou dar soluções se não tenho?
- Aí é que tá, ninguém tem. O que você tem que fazer é fingir que tem.
- E como eu faço isso?
- O negócio é você criar fórmulas para viver.
- Só que eu não acredito em fórmulas...
- Você não precisa acreditar querida. Ninguém tá perguntando se você acredita. Por exemplo, quantas pessoas por aí que acreditam no tal do pensamento positivo. O pensamento positivo é uma fórmula pronta. Pense positivo e seja feliz. Tem um monte de gente ganhando dinheiro com o pensamento positivo.
- É, tenho que admitir que você não está errado. Mas isso não é enganar as pessoas?
- Sim, só que ninguém quer a verdade, quer dizer, as pessoas querem uma verdade que seja confortante para elas. Imagina se uma pessoa com depressão lê isso que você escreveu aqui, é a mesma coisa que colocar a arma na mão da coitada e deixar que ela aperte o gatilho.
- Não tinha pensado por esse lado.
- Pois pense.
- Mas e aí, o que eu devo escrever? Sorria para a vida que a vida sorrirá para você ou algo do tipo?
- Você tá entrando no espírito da coisa...
- Se for assim, não quero mais fazer blog porcaria nenhuma.
- Olha, eu tenho outra idéia. Você é mulher não é?
- Até o momento ninguém me contrariou a respeito disso.
- Pois então, faça um blog sobre como parecer mais jovem com truques de maquiagem. Você se maquia tão bem... garanto que um monte de gente vai gostar. Ou você pode dar dicas culinárias. Você não gosta de cozinhar?
- Gosto. E gosto de maquiagem também.
- Isso. Se você quiser posso ajudá-la tirando umas fotos, a gente faz um passo a passo. Você não precisa escolher. Podemos colocar a parte da maquiagem e outra de culinária. Não, gastronomia que é mais bonito. O que você acha? O blog da mulher moderna...
- É, até que não é má idéia. Mas e meus textos?
- Querida, esquece seus textos. São muito chatos. Olha, pra falar a verdade eu não entendi nada disso que você falou aí. É tudo muito confuso e não uso uma palavra mais chula porque você é minha amiga.
- É tão ruim assim?
- É, vai lá pegar seu estojo de maquiagem vai...



sábado, 23 de julho de 2011

Mrs. Davis


Naquele dia, Mrs. Davis havia acordado de mau humor. Como em todas as manhãs em anos, seu primeiro ato foi acender um cigarro. No entanto, todos os cigarros do mundo não seriam suficientes. A eterna insatisfação... Duas estrelas em decadência interpretando duas estrelas em decadência, qual das duas ganhará? Na verdade, a vitória era apenas um detalhe. Um mero detalhe. Ao final, todos somos perdedores...
Àquela altura do dia, já havia fumado dois maços. Ou três. Não se preocupava com isso. O cigarro sempre fora seu companheiro mais fiel. Foi até a penteadeira e abriu a gaveta. A maleta de maquiagem havia aumentado com o decorrer dos anos. Os homens tornam-se charmosos, enquanto nós temos que nos submeter a máscaras cada vez mais pesadas. Não que isso fosse um problema. Tendo conquistado tudo o que desejou sendo mulher, não havia espaço para ressentimentos desse tipo. Começou pelos olhos. Sempre os considerara desproporcionais a seu rosto. Ironicamente, tinha sido com eles que conquistara o mundo. Eles e seu temperamento dado a ferozes explosões. Neste mundo, mulheres que impõem suas vontades são vistas como megeras. Riu sozinha com aquela conclusão. Os olhos teriam que estar impecáveis. O vestido já a aguardava no cabideiro. Uma dose de whisky antes de pintar os lábios. Para reanimar a alma e deleitar o corpo. Uma moleza invadiu-lhe e pode vestir-se sem problemas. Olhou-se no espelho uma última vez. O motorista a aguardava no andar de baixo. Outro cigarro. Saiu do quarto e foi-se, descomunal em seu 1,60 de altura. Maior que a vida.

Nota: No ano de 1951, Bette Davis foi indicada ao Oscar de melhor atriz por "All about Eve" ou "A malvada". Ao contrário do que se pensa, o papel de Eve não foi personificado por Bette, sua personagem era na verdade Margo Channing, estrela do teatro que vê sua vida ser tomada pela verdadeira megera Eve (papel de Ann Baxter). Bette concorreu com Gloria Swanson, igualmente admirável em sua atuação como Norma Desmond em Sunset Boulevard (Crepúsculo dos deuses). Nenhuma das duas foi vencedora, sendo a estatueta dada a quase desconhecida Juddy Holliday. Coisas do Oscar. All about Eve ainda traz no elenco Marilyn Monroe em um de seus primeiros papéis de destaque. E para aqueles que ainda não viram o filme, há pouco tempo foi lançada uma versão remasterizada.


"I have been uncompromising, peppery, intractable, monomaniacal, tactless, volatile, and oftentimes disagreeable... I suppose I'm larger than life."